Autorização de plantio de cannabis pelo STJ deve ter pouco impacto sobre preço

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O Superior Tribunal de Justiça (STJ) definiu, em 13 de novembro, que empresas estão autorizadas a importar sementes e cultivar cannabis com fins medicinais, farmacêuticos e industriais no Brasil. A decisão foi tomada pela primeira turma da corte, com relatoria da ministra Regina Helena Costa. Considerado um grande passo para o país, a autorização para o plantio de cannabis por pessoas jurídicas foi especificamente para plantas com baixo índice de tetrahidrocanabinol (THC), substância psicoativa presente na cannabis, limitado a até 0,3% de concentração. Essa diferenciação permite que fabricantes de medicamentos à base de canabidiol (CBD) e outras moléculas canabinóides explorem potenciais de pesquisa e produção.

A decisão do STJ também estabelece seis meses para que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) faça a regulamentação sobre o tema. Também indica que cabe à autarquia, junto à União, avaliar e adotar medidas de rastreabilidade, restrição do cultivo a determinadas áreas, eventual necessidade de plantio indoor ou limitação quantitativa de produção nacional.

Apesar do avanço, indústrias de cannabis medicinal apontam que a decisão deve ter pouco impacto prático. Isso porque o cultivo e a produção de plantas, assim como a extração, estabilização e processamento pós-colheita, envolvem custos e riscos que podem inviabilizar a produção, tornando a importação mais vantajosa. Existe o potencial de outros setores, como o agronegócio, se interessarem pelo tema, mas será preciso atingir preços mais baixos que os praticados no mercado internacional.

Ainda, afirmam que cabe aguardar a regulamentação da Anvisa para entender os limites que serão estabelecidos. Dessa forma, será possível fazer uma nova avaliação sobre a viabilidade econômica para as indústrias farmacêuticas. Procurada, a agência afirma que não irá se manifestar no momento.

“O que compõe o custo de qualquer medicamento não é apenas o custo do cultivo, quando falamos de um fitoterápico de plantas. São os impostos, o controle da qualidade, necessidade de educar o médico, a cadeia de distribuição regulada e controlada, que inclui custos e margens. O custo do cultivo, efetivamente, é menos de 10% do preço da ponta”, afirma Martim Mattos, CEO da GreenCare e fundador do Greenfield Global Opportunities, fundo de investimentos para negócios de cannabis.

Potencial do plantio de cannabis medicinal no Brasil

“O solo brasileiro pode produzir até quatro safras de cannabis medicinal por ano. O lugar e a temperatura são propícios, é preciso levar isso em consideração. O agronegócio também pode se entusiasmar com a cannabis, porque o cânhamo regenera o solo do plantio da soja, por exemplo. Tem um lado econômico muito forte. Não foi liberado assim à toa”, observa o advogado Vladimir Saboia, secretário geral da Comissão Direito do Setor da Cannabis Medicinal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

O agronegócio foi responsável por 49% da exportação brasileira em 2023, representando US$ 166,55 bilhões. Sendo um dos principais negócios onde o país tem forte atuação, existe potencial para que o setor se interesse nos cultivos de cannabis para fornecer ao mercado interno ou externo.

Contudo, há um ceticismo em relação ao impacto dessa produção local no preço dos medicamentos. Por ser uma matéria-prima produzida em outros países que já possuem experiência em negociações internacionais, a escala e o preço estarão diretamente ligados ao interesse da indústria brasileira. Da mesma forma, se a ideia for exportar, será preciso ter competitividade.

“Antes do cultivo, é importante discutir o tratamento tributário com eventual equiparação dessa indústria à indústria farmacêutica, sem desmerecer a decisão do STJ. Até mesmo para a movimentação da nossa economia. O Brasil é líder no agronegócio, mas em termos de macroeconomia é muito mais interessante que tenhamos endereçado questões tributárias, por exemplo, do que a localização das cadeias de cultivo”, indica Bruna Rocha, diretora-executiva da Associação Brasileira da Indústria de Canabinóides (BrCann).

Martim Mattos, da GreenCare, explica que acompanha legislação e mercado de diferentes países por conta da sua atuação junto ao venture capital de investimentos em negócios de cannabis. Segundo ele, não houve, até o momento, esse impacto da plantação com foco na cannabis medicinal na economia dos países. 

“Na Colômbia, que tem uma legislação excelente e pró-mercado desde 2018, foram dadas mais de 150 licenças para cultivo. Hoje, apenas três empresas operam. Os cultivos no Brasil que têm um diferencial de custo de produção são muito grandes, como é o caso da soja, com cerca de 45 milhões de hectares plantados. Qualquer coisa plantada nessa escala fica barato. A cannabis, no mundo inteiro, ocupa uma escala bem menor, de 100 mil hectares, e que não são apenas para fins medicinais”, argumenta o CEO.

Regulação do plantio de cannabis medicinal

Apesar de ter sido uma decisão tomada no âmbito do Judiciário, caberá ao Executivo regulamentar o plantio de cannabis medicinal através da Anvisa e de ministérios que poderão ter impacto direto na decisão, como a pasta da Agricultura. A expectativa do setor é que essa regulamentação viesse pelo Legislativo, mas os projetos de lei sobre o tema tiveram pouco ou nenhum avanço ao longo de 2024.

“Essa movimentação no Judiciário, que se antecipa uma movimentação do regulador, de certa forma define o tom do que o Brasil tem ecoado para a indústria, que é a nacionalização da sua cadeia produtiva, e isso inclui o insumo farmacêutico ativo. Um bom exemplo da insuficiência do país com relação a esta parte da cadeia produtiva é a pandemia, em que nós tivemos um alto nível de desabastecimento de insumo farmacêutico ativo, especialmente para medicamentos essenciais”, avalia Bruna Rocha, da BRCann.

Agora, o setor deve acompanhar os próximos 6 meses para ver como a Anvisa irá regulamentar sobre o tema. Existe a expectativa de que possíveis limitações e restrições aos produtores possam afastar investidores que acreditam que esse será um mercado interessante no país. 

“A Anvisa é um órgão muito preparado e não é uma discussão nova. Já houve em 2019 uma minuta que foi à consulta pública, então acredito que não tenham recebido essa movimentação toda no judiciário com surpresa. O Ministério da Agricultura também teve passagens nessa discussão, mas ele talvez não esteja tão avançado na regulação do tema”, observa a diretora-executiva.

Questões de rastreabilidade, logística, limitação de espaço e quantidade de plantas devem ser parametrizadas pela Anvisa. Rocha aponta que o acordo firmado em setembro entre a Anvisa e o Food and Drug Administration (FDA), autoridade reguladora dos Estados Unidos, pode ser utilizado para a troca de informações, já que a agência americana possui experiência com a regulação do plantio de cannabis.

“Acredito que a Anvisa faça uma regulação restrita, e isso não vai fazer com que se tenha uma revolução nesse mercado. Mesmo se a regulação não for restrita, o Brasil já não seria muito competitivo no cultivo. Será preciso fazer contas para ver se vale a pena importar ou produzir localmente”, afirma Martim Mattos, da Greencare.

Discussões seguintes

Ao regular o tema, a Anvisa provavelmente terá que corrigir algumas imprecisões de trechos da decisão do STJ. Um deles, por exemplo, é se referir às plantas de cannabis destinadas à produção de medicamentos, com tetrahidrocanabinol (THC) inferior a 0,3%, como cânhamo industrial, que é usado na fabricação de tecidos e materiais de construção. Mesmo assim, a decisão é considerada bem embasada.

“Conseguimos identificar que de fato foi algo muito pensado e ponderado, ouviu a sociedade civil organizada, a indústria, e também se valeu ali de conhecimento emprestado dos Estados Unidos. Porque esta diferenciação, hoje colocada no sistema jurídico brasileiro, uma diferenciação já existente no exterior, demonstra cuidado e cautela nas definições jurídicas do tema”, explica Bruna Rocha.

Apesar de não observar possíveis interessados que possam entrar com recurso para invalidar a decisão do STJ, a diretora-executiva da BRCann, que também é advogada, afirma que é possível que empresas focadas em produção para destinação industrial possam pedir mais esclarecimentos sobre o segmento. No entanto, os especialistas afirmam que no Legislativo não deve haver projetos de lei que busquem barrar a decisão, por ser tratar de cannabis medicinal, assunto mais pacificado no país.

Outro ponto é sobre o impacto da decisão na discussão sobre o uso medicinal do THC, uma das áreas em que se avança cada vez mais nas evidências científicas para espasticidade, rigidez muscular e dor neuropática, em utilização formulada junto ao CBD. A decisão do STJ exclui o tema por ter potencial de dependência, conforme a Lei 11.343/2006 (Lei de Drogas).

“O THC ainda vai ser objeto de muitas liminares na justiça, pela RDC 660 (sobre importação de cannabis), para as pessoas poderem se tratarem. Ele também tem propriedades medicinais, não apenas alucinógenas. Há função terapêutica”, afirma o advogado Vladimir Saboia, da OAB.

Rafael Machado

Jornalista com foco em saúde. Formado pela FIAMFAAM, tem certificação em Storyteling e Práticas em Mídias Sociais. Antes do Futuro da Saúde, trabalhou no Portal Drauzio Varella. Email: [email protected]

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