Debate sobre uso de telas por crianças e adolescentes se intensifica

Publicidade

O uso de telas, principalmente por meio dos smartphones, se tornou uma característica da sociedade atual. E não são apenas os adultos que vivem nessa realidade híbrida, já que cada vez mais crianças e adolescentes também entram nesse universo. O fato levanta preocupação porque, nessa fase da vida, a utilização em excesso de dispositivos eletrônicos pode impactar o desenvolvimento cognitivo e psicológico – e, consequentemente, a saúde mental. Diante desse cenário, as discussões sobre estratégias para o uso racional nesse público e até a construção de políticas públicas têm ganhado espaço.

Os dados obtidos por meio de pesquisas mostram o tamanho do desafio e corroboram a necessidade de fazer algo. Um estudo deste ano da FGV, por exemplo, apontou que o Brasil possui hoje 480 milhões de computadores, notebooks, tablets e smartphones em uso corporativo ou doméstico – o que representaria 2,2 dispositivos digitais por pessoa. Já outra pesquisa, realizada pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br), identificou que 95% de crianças e adolescentes brasileiros, entre nove e 17 anos, já estão conectados.

Na esfera pública, os governos estão intensificando a atuação sobre o tema, com diversos países – como França, Alemanha e Inglaterra, entre outros – adotando restrições de aparelhos eletrônicos nas escolas. No Brasil também há exemplos nesse sentido, como a cidade do Rio de Janeiro e, mais recentemente, de São Paulo, que aprovou o Projeto de Lei 293/2024 na Assembleia Legislativa e aguarda sanção da matéria.

Para que as iniciativas acontecessem, houve o entendimento de que a hiperconectividade dos alunos estaria associada a um prejuízo nos processos cognitivos e na qualidade da interação social. “Celular não é brinquedo”, destaca Evelyn Eisenstein, pediatra e integrante do grupo de trabalho Saúde na Era Digital, da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP). “As crianças estão sendo expostas cada vez mais precocemente a esses aparelhos. Há um uso excessivo e prolongado. E, nas salas de aulas, há a triangulação dessa atenção, ou seja, a divisão do foco entre o professor, o colega ou a atividade e o dispositivo eletrônico, o que prejudica o aprendizado.”

O desenvolvimento infantil na era digital

Elton Yoji Kanomata, psiquiatra e professor da pós-graduação em psiquiatria pelo Einstein, destaca que, em adultos, já se sabe que o uso constante de dispositivos digitais pode impactar estruturas cerebrais e processos cognitivos de forma semelhante ao que é observado nas dependências químicas. Justamente por isso, os prejuízos são maiores para crianças e adolescentes, que ainda não têm o cérebro maduro e possuem as áreas de julgamento, controle de impulso, atenção e tomada de decisão ainda em formação.

“A experiência de pequenos, mas constantes estímulos prazerosos, pode modificar a forma como o sistema de recompensa no cérebro é ativado”, explica. “Assim como ocorre na dependência química e nos jogos, o indivíduo precisará de estímulos cada vez mais intensos para sentir o mesmo nível de prazer. Dessa forma, pode ser esperado um mal padrão de uso adaptativo, que leva a um uso compulsivo de dispositivos digitais”, destaca o psiquiatra.

A pesquisa da Cetic.br revelou que a proporção de crianças expostas cada vez mais cedo tem aumentado em um ritmo acelerado. Dos entrevistados em 2023, 24% relataram que o uso das redes começou ainda na primeira infância (até os seis anos de idade) – em 2015, essa proporção era de apenas 11%.

Na rotina em sala de aula, o foco e a atenção são habilidades que fazem toda a diferença. Kanomata, entretanto, salienta um hábito comum adquirido com o uso excessivo dos dispositivos digitais.

“É muito comum o hábito de alternar rapidamente o consumo e acesso a informações – famoso ‘multitask’. Se, por um lado, isso pode levar a um aumento de performance, por outro, essa elevação é temporária e, com o tempo, essas habilidades cognitivas tendem à fadiga mental, refletindo em estresse, queda de performance, comprometimento de memória e da concentração”, aponta o médico do Einstein.

Entre os principais problemas de saúde ligados ao uso inadequado de telas por crianças e adolescentes estão transtornos do sono, problemas de saúde mental, transtornos do déficit de atenção e hiperatividade, transtornos de imagem, isolamento social, sedentarismo, problemas visuais e auditivos e transtornos posturais (como lesões de esforço repetitivo).

Como as telas afetam a saúde mental infantil

Embora o desafio tenha sido agravado pela pandemia, quando muitos desses jovens precisaram cumprir o isolamento social em uma fase fundamental para o desenvolvimento social, o olhar para o problema começou muito antes. O próprio grupo de trabalho da SBP teve início ainda em meados dos anos 2000 e acaba de lançar uma nova atualização do seu guia de recomendações sobre proteção digital e social.

O manual destaca a importância dos primeiros um mil dias para o desenvolvimento cerebral e mental da criança, assim como os primeiros anos de vida, a idade escolar e toda a fase da adolescência. A substituição da presença e do vínculo familiar por telas, por exemplo, pode provocar um prejuízo significativo em questões como autoestima, apego e segurança a longo prazo.

Para Eisenstein, a chamada “intoxicação digital” tem um efeito cascata no desenvolvimento de inúmeros sintomas, inclusive aqueles relacionados à saúde mental. “Não é raro começar a observar sintomas com transtornos de sono, transtornos de humor, instabilidade, choros frequentes, isolamento. São sintomas que não são nada pequenos nessa idade. Por isso, afirmamos que tela não é brincadeira de criança”, afirma. Além disso, a grande quantidade de informações absorvidas pelo cérebro durante o uso também pode levar à exaustão e fadiga que, por consequência, pode gerar níveis variados de estresse e alterações de comportamento.

Discussões sobre o futuro

Os dois especialistas concordam que investir na educação sobre o uso desses dispositivos é uma das estratégias prioritárias para diminuir a má utilização e seus impactos sociais, psicológicos e na saúde dos pequenos. Para isso, o exemplo deve começar pelos adultos.

“O modelo referencial é o pai, a mãe, o cuidador principal”, aponta Eisenstein. “É esse adulto que tem o controle para comprar ou não o celular para uma criança, para ligar ou desligar um dispositivo. Mas esse adulto frequentemente também senta na frente da televisão e não conversa com a criança até surgirem os problemas”, lamenta. “O modelo ideal deve ser de prevenção, de estabelecer um diálogo com aquela criança, de participar do dia a dia dela.”

A aposta não é classificar a tecnologia como uma inimiga, uma vez que as telas já fazem parte da sociedade como conhecemos, mas desenvolver uma cultura do uso responsável e não atribuir a elas papeis que não lhes cabem. Até porque o uso de telas e tecnologias digitais devem avançar ainda mais no cotidiano das crianças, na visão de Kanomata.

“Apesar disso, a preocupação de pais, professores e sociedade já existe. Estamos observando um movimento de debates sobre o uso na escola, o limite do tempo de tela e a tentativa de construir a longo prazo uma relação de equilíbrio com a tecnologia. Devemos investir não apenas em prevenção como também em políticas de saúde pública e maior acesso à saúde”, finaliza.

Isabelle Manzini

Graduada em jornalismo pela Faculdade Paulus de Tecnologia e Comunicação. Atuou como jornalista na Band, RedeTV!, Portal Drauzio Varella e faz parte do time do Futuro da Saúde desde julho de 2023.

Futuro da Saúde

Compartilhe essa Notícia:

publicidade

publicidade

plugins premium WordPress