Considerada o padrão de excelência em medicina, a formação de especialistas por meio da residência médica ainda não é acessada por uma grande parte dos profissionais brasileiros. O Brasil possui aproximadamente 600 mil médicos, segundo o Conselho Federal de Medicina (CFM), no entanto cerca de 275 mil não concluíram residência nem obtiveram título. Dentre os motivos para a falta de especialização estão desafios como a desproporção no número de vagas em relação a quantidade de formandos em medicina e distribuição desigual dos programas de residência. Esse déficit preocupa entidades do setor, porque impacta na qualidade da formação médica brasileira.
Anualmente, entre 30 e 40 mil estudantes iniciam sua jornada na formação da medicina e estima-se que em 2035 o país passará a marca de 1 milhão de profissionais, de acordo com a Demografia Médica no Brasil 2023. No entanto, as vagas para residência médica não acompanham o mesmo ritmo. De acordo com levantamento realizado pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) e pela Associação Médica Brasileira (AMB), entre 2018 e 2024 o número de estudantes de graduação em medicina aumentou 71%, enquanto o de médicos residentes cresceu apenas 26%. Além disso, o estudo revela uma concentração geográfica desigual de vagas, com mais da metade dos residentes localizados nos estados de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro.
A defasagem entre egressos de medicina e vagas de residência médica quase triplicou no período analisado (2018-2024), saltando de 3.886 vagas em 2018 para 11.074 em 2024. E, segundo o relatório, esse déficit tende a crescer ainda mais com a entrada de 42 mil novos médicos a cada ano, projetadas a partir da abertura de novas escolas.
Esse cenário contraria a Lei 12.871/2013 que institui o Programa Mais Médicos e dá outras providências. Uma delas é a determinação de que a oferta de vagas de residência pelos programas deve ser equivalente ao número de egressos do ano anterior. De acordo com a AMB, atualmente existem 45 mil vagas em cursos de graduação e 25 mil vagas de residência. Para Fernando Tallo, representante da AMB na Comissão Nacional de Residência Médica, esse é um problema grave que o país deve enfrentar. “A residência hoje é quase a formação definitiva do médico, porque na graduação nós não temos cenários de prática, não temos professores suficientes, e as faculdades têm muitas deficiências. Então há um prejuízo muito grande na formação do médico, se ele não experimentar essa fase de residência”, diz.
A Comissão Nacional de Residência Médica é responsável pela deliberação de processos de regulação, supervisão e avaliação dos novos programas de residências e instituições proponentes. Para isso, ela realiza vistorias in loco. Atualmente, mais de 500 visitas estão em atraso, segundo a AMB. A comissão está trabalhando em uma força tarefa para tentar reduzir a fila de espera até o final do ano e conseguir aprovar a abertura de mais vagas.
Outro gargalo para o aumento do número de especialistas é a falta de interesse dos estudantes em fazer a residência. De acordo com a Associação Brasileira de Educação Médica (Abem), a remuneração, as pressões psicológicas e por produtividade e a falta de preparo e valorização dos preceptores são alguns motivos que afastam os recém-formados desse tipo de formação. “Muitas vezes, cobra-se do residente uma produtividade como se fosse um profissional contratado e não um aprendiz. Isso já desvia o caráter de formação da residência. Ao mesmo tempo, os preceptores não são necessariamente professores e não sabem lidar com a necessidade de atendimento e de ensino”, explica a professora Denise Herdy Afonso, representante da Abem na Comissão.
Aumento dos cursos de graduação
Dados do Painel de Radiografia de Escolas Médicas do CFM mostram que, em 2024, o país possui 390 escolas médicas. Conforme o estudo ProvMed 2030, mais de 20 mil novas vagas foram abertas em dez anos (2010-2020), a maioria (80%) em instituições de ensino privadas. A expansão foi intensificada a partir de 2013, com a abertura de 17 mil vagas de 2013 a 2019.
Tallo, da AMB, acredita que o alto número de cursos contribui para a quantidade de médicos sem especialidades e precariza a formação. “O aumento de faculdades de medicina é uma tragédia, pois nós não confiamos na qualidade da formação. O Brasil não é capaz de formar bem 30, 40 mil médicos por ano. Nós temos absoluta convicção disso e quando um médico é mal formado ele pode ser até mesmo um risco para a sociedade”, salienta o médico.
O CFM também expressa preocupação. Para o coordenador do Sistema de Acreditação de Escolas Médicas do Conselho, Alcindo Cerci, a abertura desenfreada de faculdades sem levar em consideração os critérios técnicos de formação é um problema de saúde pública. “Nós recebemos algumas denúncias, por exemplo, de alunos que passam o internato, que são aqueles dois últimos anos da faculdade, sem aulas práticas, sem fazer um parto. Isso nos gera muita preocupação. Nós já temos o número de formação de médicos suficientes para o nosso país, além disso, não há critérios de qualidade para a formação hoje. Por isso temos uma ação muito forte na questão dos novos cursos e somos contrários”, afirma.
Soma-se a esse contexto a ampla oferta de cursos de pós-graduação lato sensu em especialidades médicas na modalidade de ensino a distância (EaD). Segundo levantamento da USP e AMB, mais de 41% das 2.148 especializações ofertadas por instituições públicas e privadas no país são EaD e 11%, em regime semipresencial. A expansão desses cursos com carga mínima de 360 horas também traz um problema legal já que, conforme a legislação brasileira, o título de médico especialista só pode ser concedido a médicos que tenham concluído a residência médica, que varia de dois a cinco anos de acordo com a especialidade.
“Eu não posso comparar um profissional que fez mais de 300 horas em uma especialização virtual de final de semana com um residente que teve no mínimo cinco mil e 600 horas de aprendizado. A residência continua sendo a melhor forma de formar o especialista”, defende a professora Afonso.
Exame de proficiência
Visando ao incremento da qualidade da formação médica, tramitam no Congresso Nacional diversos projetos de lei que buscam implementar um Exame Nacional de Proficiência em Medicina. O mais avançado é o PL 2.294/2024 do Senado de autoria do senador Marcos Pontes (PL/SP). A proposta prevê que somente poderão se inscrever no Conselho Regional de Medicina e, consequentemente, exercer a profissão quem obtiver aprovação na prova. A ideia é reproduzir o modelo de avaliação de proficiência já adotado pela Ordem dos Advogados do Brasil e pelo Conselho Federal de Contabilidade e aplicar o exame, pelo menos duas vezes ao ano, em todos os estados e no Distrito Federal.
A prova vai avaliar competências profissionais e éticas, conhecimentos teóricos e habilidades clínicas para aferir a qualidade da formação dos alunos que concluíram a graduação na área e habilitação para a prática médica. O projeto também determina que o CFM regulamente e coordene o teste em todo o país, cabendo aos Conselhos Regionais de Medicina sua aplicação. “As pessoas têm o direito de saber que aquele médico que elas vão confiar a sua vida, a vida do seu filho, a vida do seu parente, tem um conhecimento e técnicas mínimas para fazer o seu trabalho. Por isso nós defendemos o exame, prezamos pela segurança e saúde da população”, destaca Cerci.
No entanto, algumas entidades são contrárias às propostas de uma prova de proficiência. Em 2018, a Direção Executiva Nacional de Estudantes de Medicina (DENEM) realizou uma série de postagens no Facebook sobre como um exame de ordem não protege os pacientes e também não melhora as escolas. “Analisando os resultados de outros exames nacionais para a melhoria da qualidade educacional, vemos pouca ou nenhuma evolução, acompanhados de prejuízos devastadores”, diz o posicionamento. A Direção ainda aponta que o PL se baseia no Exame da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e no Exame Nacional de Avaliação do Ensino Superior (Enade), no entanto alega que a prova da OAB não foi capaz de frear a abertura de faculdades de direito e que o Enade tem falhado em medir a qualidade do ensino superior.
Para a Abem, “o exame de ordem não garante a boa qualidade da formação” e acaba por penalizar os estudantes, de forma individual, no lugar de endereçar o desafio estrutural de exigência de qualidade das escolas médicas. “Reduzir a avaliação à dimensão discente é ignorar a complexidade da formação médica e desresponsabilizar o governo em seu papel republicano de garantir a qualidade do ensino por meio de processos regulatórios (autorização e regulação dos cursos)”, declarou em nota.
Por outro lado, a AMB acredita que a prova é a única forma de combater a proliferação indiscriminada de cursos de Medicina e garantir a boa formação dos profissionais. “Nós não temos outra alternativa: ou fazemos a prova de ordem ou teremos uma tragédia social. Não queremos punir os alunos, mas não podemos, em troca, punir os pacientes”, afirma Tallo.
Política Nacional de Residências em Saúde
Desde 2023, o Ministério da Saúde, em parceria com o Ministério da Educação, trabalha na construção de uma Política Nacional de Residências em Saúde (PNRS) para alinhar as residências às necessidades, prioridades e políticas do Sistema Único de Saúde (SUS), além de fortalecer o papel do sistema no ordenamento da formação de especialistas. Alguns objetivos previstos na PNRS são estimular o credenciamentos de novos programas de residência de acordo com as demandas do SUS, incentivar ações de cuidado à saúde mental do residente, enfrentar o assédio e fortalecer o monitoramento e a avaliação dos programas.
Entre as ações pretendidas pela PNRS estão a implementação do Cadastro Nacional de Especialistas, bancos de avaliadores e incentivos financeiros. Bem como o estabelecimento de critérios para priorização de especialidades e áreas de concentração estratégicas para o SUS. Durante os meses de setembro e outubro a política esteve em consulta pública e recebeu mais de 700 contribuições. De acordo com a pasta da saúde, a proposta alcançou uma média de 82% de concordância total com os termos.
Instituições como a Abem, a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh), os conselhos Nacional de Secretários de Saúde (Conass), de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems) e Nacional da Saúde (CNS) também enviaram contribuições. Segundo o Ministério, a partir das sugestões, “54 itens da política já foram revistos, considerando edições, inclusões e exclusões”.
Para a Abem, a PNRS representa uma retomada de diálogo interministerial na definição de políticas que fortaleçam as residências. A professora Denise Afonso aponta que a política, além de priorizar o SUS, traz questões importantes para a qualidade da especialização como a preocupação com a saúde mental e com o preconceito. “Nós sabemos que a medicina ainda é vista como uma das profissões de elite. Ainda temos discriminação nas residências de gênero, classe e raça nas residências, e a política não se esquivou de falar sobre isso. Eu vejo grandes avanços e a promoção de mudanças importantes”, diz.
Afonso também destaca que essa é a primeira iniciativa de fortalecimento das residências médicas com um caráter multiprofissional, o que, para ela, “faz muita diferença para que o país alcance as mudanças necessárias”.
Em contrapartida, a AMB e o CFM não concordam com uma política única para o processo formativo de diferentes áreas da saúde. Para as entidades, a formação pode ser colaborativa, mas à frente dela devem estar profissionais para cada uma das profissões. “Gostaríamos que os ministérios tivessem pensado em duas políticas separadas: uma de residência médica e outra para as demais residências em saúde. Entendemos que são diferentes. Apesar do contexto ser o SUS, elas têm legislações diferentes com finalidades também distintas”, comenta Alcindo Cerci, do CFM.
O Conselho Federal de Medicina ainda vai realizar reuniões internas de avaliação da PNRS, mas já expressa receio em relação à manutenção da qualidade das residências médicas diante do incentivo à abertura de novos programas. Outros pontos que também geram preocupação são o esvaziamento das competências da Comissão Nacional de Residência Médica e um afastamento do Ministério da Educação sobre o assunto.
Para Cerci, a política fica muito a cargo da pasta da saúde, visto que ela realiza boa parte do pagamento das bolsas de residência. “Temos ressalvas e estamos disponíveis para construir e dialogar junto com os demais atores para que a gente possa retirar esse viés e fazer uma política que, de fato, seja boa para o nosso país e principalmente para a nossa população”, afirma.
A proposta segue, agora, para avaliação das instâncias colegiadas do Sistema Único de Saúde (SUS).