Nas últimas semanas o mercado tem vivido à espera do anúncio das medidas fiscais pelo Governo Federal para adequar as contas públicas. A expectativa é que as ações contemplem tanto corte de gastos como regras para limitar o aumento das despesas. Uma das possíveis ações é o Ministério da Saúde incluir o orçamento da saúde nas regras do arcabouço fiscal, o que tem movimentado o debate sobre o financiamento da pasta e é visto com preocupação.
Com o fim da política de teto de gastos em 2023, o orçamento atual da saúde voltou a se basear no piso constitucional da saúde, que determina 15% da receita corrente líquida. Caso a inserção no novo arcabouço se concretize, a despesa do Governo com a saúde poderia variar até 2,5% ao ano, limitado a 70% do aumento da receita em 12 meses – a lógica é justamente que a despesa cresça em uma velocidade menor do que o aumento da receita.
O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, disse em entrevista à CNBC Brasil, no último domingo (17), que o pacote de corte de gastos do Governo pode ser apresentado em breve. Com R$ 218,5 bilhões previstos em 2024, o Ministério da Saúde está na mira por concentrar uma das maiores cifras do Governo Federal.
Por um lado, economistas defendem que a inserção da saúde no novo arcabouço fiscal é essencial para controlar os gastos públicos e dar credibilidade ao Governo — e necessariamente Saúde e Educação precisam estar dentro das regras. Ainda, com os gastos com o SUS crescendo acima dos gastos totais do Governo, teme-se que haja um desajuste frente às expectativas do arcabouço fiscal.
“Se o presidente Lula conseguir mandar essa proposta e ela for aprovada, a qualidade das instituições fiscais brasileiras melhora muito. Evidentemente, isso faz com que o gasto em saúde cresça a uma velocidade um pouco menor. Mas isso é importante, porque temos um déficit público grande. A dívida está muito alta”, afirma Samuel Pessôa, professor da Escola de Pós-Graduação em Economia da Fundação Getulio Vargas (EPGE/FGV) e chefe do Centro de Crescimento Econômico do Instituto Brasileiro de Economia (FGV/IBRE).
Por outro lado, existe o temor sobre os impactos na assistência à população, na qualidade dos serviços e na capacidade de investimento em novas tecnologias. Com um crescimento limitado, o SUS pode ficar próximo da estagnação, sem poder trazer novos programas e tratamentos para o escopo das políticas públicas.
“Quando dizem que vai ter que mudar o cálculo do gasto do Governo Federal na saúde, estão mandando uma mensagem muito clara de que saúde não é prioridade. O gasto público em saúde representou no máximo 4,5% do PIB, que é muito pouco para um país que quer ter uma saúde universal, com as características do SUS, com equidade, universalidade e integralidade”, afirma o ex-ministro Nelson Teich, mestre em Economia da Saúde pela Universidade de York, no Reino Unido.
Dentre as alternativas para que a saúde não perca recursos e tenha um aumento no orçamento, especialistas apontam que o governo poderia explorar recursos de imposto de renda sobre pessoa física, lucros e dividendos, recursos provenientes da exploração do Pré-sal, impostos sobre exportação e taxação sobre produtos nocivos à saúde. Ainda, propõem colocar outros gastos no conceito de ações e serviços públicos de saúde que contam para gasto mínimo e reavaliar regras para as emendas parlamentares.
Procurado, o Ministério da Fazenda afirma que não irá se manifestar sobre o tema. O Ministério da Saúde não respondeu aos questionamentos do Futuro da Saúde até o fechamento desta reportagem.
Visão do setor sobre alteração no piso da saúde
O SUS perdeu cerca de R$ 75,8 bilhões no seu orçamento, entre 2018 e 2022, por causa do Teto de Gastos, que congelava os gastos da União e limitava o aumento ao Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA). É a avaliação do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), publicada em nota técnica intitulada “Evolução do Piso Federal em Saúde: 2013-2020”.
Com o novo arcabouço fiscal, o Teto de Gastos foi revogado, passando a vigorar o entendimento anterior, que define que o orçamento da saúde será de 15% da receita líquida do Governo. Por isso, em 2024 a pasta teve um aumento no orçamento previsto de 46% em relação ao ano anterior. Agora, o Governo estuda incluir a saúde dentro das regras do novo arcabouço fiscal.
“Temos estimativas que apontam que não vale a pena fazer essa mudança. Além do custo social, o impacto da saúde sobre as despesas discricionárias não são explosivos. Por isso, somos contrários à mudança da regra. Mas isso não significa que em uma outra conjuntura não passemos a discutir o modelo de financiamento do SUS, que torne ainda mais sustentável o crescimento do gasto público per capita em saúde, uma vez que, historicamente, gastamos muito pouco”, defende Carlos Octávio Ocké-Reis, economista, técnico de Planejamento e Pesquisa do Ipea e ex-diretor do Departamento de Economia da Saúde, Investimentos e Desenvolvimento (DESID) do Ministério da Saúde.
No novo arcabouço fiscal, o orçamento pode crescer até 2,5%, limitando a 70% da variação da receita nos 12 meses anteriores, de acordo com a meta. Essa mudança é vista com preocupação por sanitaristas e economistas ligados ao campo da saúde, por conta das demandas do SUS, o envelhecimento populacional e o subfinanciamento histórico da pasta.
“Teria que ter uma avaliação sobre alguma forma de cortar em outro lugar que não da Saúde. Independentemente disso, a gestão tem que ser muito bem trabalhada porque vamos ter um pouco menos de dinheiro que temos hoje. A diferença de orçamento de 2023 para 2024 foi muito grande. Mas isso só aconteceu porque nós conseguimos voltar a usar os 15% da receita corrente líquida”, observa o ex-ministro Nelson Teich.
Enquanto não há definições sobre outras possíveis fontes de recursos e o Governo não apresenta sua proposta para cortar gastos, há uma defesa para que se permaneça o piso constitucional da saúde. Para Carlos Octávio Ocké-Reis, essa poderia ser uma alternativa, apesar da pressão que poderia gerar sobre despesas discricionárias. “Não seria ruim que a Saúde e Educação tivessem uma regra de gasto específica, porque os efeitos multiplicadores e redistributivos são muito altos”, avalia. “É como se parte da sustentabilidade do novo arcabouço fiscal, sua consolidação fiscal e estabilidade econômica fossem ajudadas por políticas sociais desses setores, que promovem o crescimento do Produto Interno Bruto a partir do seu dinamismo”.
Visão econômica sobre orçamento da saúde
“Nós não sabemos em detalhe qual é o teor do que o presidente Lula enviará ao Congresso, mas a medida que precisa ser feita não é cortar recursos da saúde. O que ocorre é que o piso constitucional estabelece que os 15% de gás na receita corrente líquida, e essa regra é incompatível com o arcabouço fiscal”, observa Samuel Pessôa, do IBRE/FGV.
Ele afirma que mais importante do que economia de recursos por parte do Governo Federal, deve haver uma uniformização do racional das instituições fiscais no Brasil. Com isso, almeja não só a estabilidade econômica, mas também atrair e ampliar investimentos privados no país, uma das visões do novo arcabouço fiscal.
O professor argumenta que “a taxa de câmbio a 5,80 reais por dólar não faz o menor sentido com o fundamento da economia brasileira. E ela só está onde está porque as pessoas percebem que tem uma inconsistência na política fiscal”. Por isso, trazer consistência é essencial para o país receber investimentos.
De acordo com Jeferson Bittencourt, Head de macroeconomia do ASA e ex-secretário do Tesouro Nacional, alguns caminhos estão sendo analisados pelo Governo para reduzir os impactos frente a uma possível mudança no financiamento da saúde. Dentre eles está incluir despesas como gasto mínimo, alterar os índices propostos e obrigar o direcionamento de emendas parlamentares para a saúde: “O importante para o setor seria buscar um financiamento estável, compatível com as tendências demográficas da população e que não gerasse pressão adicional sobre a despesa global, para que não estivesse permanentemente na mira dos ajustes fiscais.”
Carlos Ocké, do Ipea, também aponta que é possível mirar outras áreas. Em sua visão, dá para cortar gastos indiretos do Governo e subsídios que sejam ineficientes. A ideia é aumentar a capacidade de receita do Estado, fazendo que o resultado primário seja cumprido.
Ainda sobre a possível mudança, Pessôa defende que a saúde não pode ficar a cargo da revisão do orçamento de acordo com a oscilação da economia. “Gastos públicos, seja com saúde, seja com educação, seja com política social, são gastos persistentes ao longo do tempo. São gastos que não dependem muito do ciclo econômico. As pessoas vão ter que fazer os seus exames, as pessoas vão adoecer na mesma velocidade com a economia crescendo ou mais estagnada.”